Recentemente, em texto sobre a poeta uruguaia Ida Vitale, eu disse que aqui no Brasil conhecemos pouco das escritas do sul, só posso supor que tal barreira foi o idioma castelhano x português e a influência européia e norte-americana sobre as editoras brasileiras. Na verdade, para mim, além do idioma e das questões mercadológicas, as questões políticas promoveram essa impossibilidade de circulação de obras literárias entre os cidadãos de países como Uruguai, Argentina, Colômbia, Bolívia, Paraguai e Chile. Os direitos civis e humanos sempre foram uma ameaça aos donos do poder, e a história se repete, podemos ver. Investigando a história de Liliana Heker e de seus contemporâneos, confirmo que sim, o fator político promoveu o isolamento dos países, e a Operação Condor derramou anos de chumbo sobre a linha do tempo da cultura sul-americana.
Aos dezesseis anos, Heker já demonstra seu prodígio ao participar de importantes revistas literárias, publicando contos e escrevendo editoriais contundentes. Se tiver curiosidade, leitor, acesse o site do Arquivo Histórico de Revistas Argentinas e leia os textos de Liliana, que em tão jovem idade já demonstrava que a Literatura é seu modo de vida. Numa polêmica com Julio Cortázar, desafia o escritor sobre o fato de ele ter se exilado no exterior enquanto outros escritores permaneceram no país para testemunhar a brutalidade do regime totalitário, da ditadura que assolou e exterminou a vida de tantos jovens. Na revista El Grillo de Papel, como secretária editorial (responsável pelas primeiras etapas dos processos editoriais), Heker defende que o compromisso do escritor deve ser com a sua escrita, seu processo, seu projeto literário. A revista apresenta uma farta e rica série de reportagens sobre eventos em cinema, teatro, artes plásticas, literatura, filosofia, não somente de face política, mas também existencialista; a visita de Sartre e Simone de Beauvoir à Cuba, por exemplo, temas da revolução africana. Mais inovador e transgressor, impossível.
Esse preâmbulo todo para dizer que a leitura de Zona de Clivagem, lançado pela Roça em sua linha editorial de autoras sul-americanas, traz uma obra de umas das escritoras mais comprometidas com a literatura e que tem em seu projeto fortes temas da realidade, como o ambíguo e imprevisível comportamento humano e os fatos históricos que assolam a subjetividade coletiva argentina até os dias de hoje, o que pode ser observado em eleições atuais, inclusive. Este romance é uma narrativa-armadilha sofisticadíssima, da qual se entra desavisado e é impossível sair. A tríade Irene-Alfredo-Cecília conta com diálogos com um psicanalista, com os pensamentos da criada, em meio a um desfile de referências musicais e literárias. A zona de clivagem de Irene é o que a mantém mais forte diante de todas as tentativas de clivagem empreendidas por Alfredo. Aqui está uma narrativa-charada, só vai saber decifrar quem ler.
Fica uma pista:
“Uma espécie de estado poético, escreveria. Já que há mensagens secretas, códigos de beleza que estão aí, em suspenso, para alguém que os descubra. Por acaso não pode extrapolar? Adivinhar em Alfredo o que ela mesma sente às vezes: o desesperado impulso de capturar, de se apoderar de algo que fatalmente estará sempre fora dela.”
Para enriquecer a leitura:
Arquivo Histórico de Revistas Argentinas
Pesquisa de 2006 sobre as revistas literárias de Abelardo Castillo
Filme sugeridos:
Estado de Sítio, de Costa Gravas (1972)
Documentários:
Repressão à Literatura na Argentina – Morte de Rodolfo Walsh
Músicas:
Nélida Capela
Nélida Capela é mestra em Teoria Literária na PUC-Rio e atua no mercado editorial e de livrarias. É curadora, com foco em eixos temáticos como Africanidades, Estudos de Gênero e Estudos Indígenas, Mercado Editorial Independente. É fundadora da NC Curadorias – plataforma independente de curadoria e conteúdo descolonial.