I

Últimas corujas, qualquer som me desperta e assim a madrugada se estende. O olhar demanda alongamento. Névoas. No horizonte difuso, o sol desenha montanhas.

Rastros de perfume por onde a cabreúva florida se espalha. No dossel desponta um galho seco ali o beija-flor-de-papo-branco faz uma pausa e admira sua fortuna. Aves são leveza. 

O sol esquenta, injeta energia na floresta que já se movimenta. Observo, como quem borda sentidos no tecido da vida, mas ninguém repara, árvores mudas, formigas obsessivas , ventos frios, minhocas  indolentes. Tenho esperanças que ao menos as aves me compreendam, mas elas me olham, e voam.

II

Aves são feitiços, duendes. Passarinhar é furar a bolha da humanidade, é assunto para estar no mato, uma senha e um perfil para freqüentar novos portais. Buscar beleza avoante, tangarás – passarinhos azuis de topete vermelho – que se mostram por um mero instante, e somem. 

Trilho. Mesmo os mais leves passos espantam a juriti. O pau-jacaré tombado é sinal de fortes ventos passados. Folhas que hoje apodrecem serão a floresta que recresce em ciclos de luz e sombra. Teias cruzam a trilha, besouros embaixo da casca se escondem do arapaçu, que fuça e pinça na madeira velha.

Como explicar o que é o tempo para a lagarta que se encolhe em pupa e renasce borboleta. Contemplo. A floresta é lenta mas o pula-pula é passarinho e voa de galho em galho em busca de insetos que se escondem embaixo das folhas. Apenas observo.

III

O calor espalha maritacas a nordeste, acima as andorinhas pastam insetos. O vento empresta sentido ao balançar das folhas, que reproduzem o mar. A atenção plena modula o fluxo sensorial, a observação incorpora o sujeito e com ele uma dose de curiosidade. De onde vem esses picumãs que o vento sopra?

Dúvidas, incertezas. A vida evapora como a água que murcha das folhas. A seca. Idéias impermanentes. A sabedoria das sementes que sentem o certo momento de brotar. Aguardo.

Exposto aos meus sentidos, elaboro elementos que me tocam. Enquanto isso o céu condensa nuvens, montanhas onde o sol se abriga. O relógio não anda, tranqüilamente aguarda as primeiras corujas.

Guto Carvalho

Guto Carvalho é um exurbano e observador de aves. Dedica-se a aglomerar pessoas e a promover a sua relação com a natureza.

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