No dia 22 de outubro, em audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organizações da sociedade civil brasileira denunciaram o desmonte das instituições e dos direitos socioambientais no Brasil e seus reflexos nas violações, ameaças e perseguições a defensores e defensoras de direitos humanos. Além de alarmantes números da escalada da violência nos últimos dois anos, foram narradas as violências perpetradas pelo Estado brasileiro em relação aos indígenas Avá Guarani e aos quilombolas do Quilombo Santa Rosa dos Pretos. (1)

Esta audiência desvelou a relação entre a violência crescente nos territórios e o desmonte em curso das políticas socioambientais brasileiras, que, há muito,está sendo acompanhado e denunciado. Esta é mais uma face deste processo que vem minando os direitos conquistados no Brasil.

Falar em desmonte das instituições socioambientais e em retrocessos ambientais deve nos levar à seguinte pergunta: que projeto político é este que está sendo colocado exatamente no lugar dos direitos que havíamos conquistado na Constituição Federal de 1988 e que a duras penas vínhamos tentando garantir?

Em linhas gerais, este projeto político baseia-se na privatização de terras comuns e públicas,na “financeirização” da natureza e na legalização de atividades até então consideradas criminosas. Estamos falando de privatização de unidades de conservação; de legalização de extração ilegal de madeiras, de garimpo e da grilagem; da mineração e arrendamento rural em terras indígenas; do desmantelamento das políticas de reforma agrária em prol da produção de títulos de propriedades individuais. Cada uma destas políticas tem suas complexidades e peculiaridades, mas elas representam cerceamentos acontecendo no tempo presente e que definirão nosso futuro. Estas ações representam a transferência do que é da sociedade e do que é coletivo a poucos grupos que se beneficiam do lucro imediato desta política.

Estamos trocando um futuro possível pelo lucro de poucos. De um lado, entregam terras públicas, terras coletivas, floresta, água, territórios tradicionais, culturas milenares, espaços protegidos. E, de outro, nos devolvemqueimadas, aumento de violência, poluição e esgotamento da água, terras destruídas pela extração de minério, por grandes projetos extrativistas. Não parece nada justo, nem ao menos sensato. 

Outro ponto chave da política atual é a aposta na autorrregulação das atividades poluidoras, em nome de uma suposta agilidade e desburocratização das licenças e autorizações. Vemos isso no processo de autorização de liberação de agrotóxicos e nas autorizações para extração de madeira, por exemplo. No entanto, uma das melhores representações desta face do projeto político atual é o “projeto de lei do fim do licenciamento ambiental”. (2)

O licenciamento ambiental é o procedimento administrativo destinado ao controle das atividades poluidoras. Presente no Brasil, pelo menos, desde a década de 1970, grandes projetos são submetidos a análisespelos órgãos ambientais antes da sua execução. Alternativas locacionais são consideradas nestes mesmos licenciamentos ambientais. Ele também se constitui como uma importante arena pública de debate sobre os projetos. Na grande maioria dos casos, as discussões públicas sobre o projeto apenas iniciam-se com o pedido da licença ambiental. É por ele que sabemos qual a dimensão do projeto, sua localização, quais impactos estão previstos, quem serão os afetados. E, no âmbito deste procedimento, são realizadas as audiências públicas que, em muitos casos, constituem-se como o único momento em que o Estado e o responsável pelo projeto escutam as comunidades atingidas.

É um procedimento que precisa ser aperfeiçoado. Muitos são os casos de denúncias de licenciamento ambiental que não consideram os grupos diretamente afetados, que não respeitam o direito à consulta prévia, livre e informada, que aprova atividades produtivas em desconformidade com os padrões. Mas a necessidade de aperfeiçoamento não significa que podemos prescindir deste importante instrumento.

Pelo projeto em curso, muitas atividades deixarão de estar submetidas a um controle estatal prévio, não mais se exigindo a licença ambiental. Outras tantas, poderão fazer um autolicenciamento ambiental, restando ao Estado a fiscalização posterior por amostragem. Além disso, há prazos fatais para manifestação de entidades e órgãos públicos nos casos de licenciamento que afetem terras indígenas e territórios quilombolas, bens culturais protegidos. Isso dentre tantas outras previsões que levam a afirmação de que, na verdade, é um projeto de lei que acaba com o licenciamento ambiental, tal como o instrumento foi concebido e atualmente está funcionando no Brasil.

A agilidade no licenciamento ambiental será obtida, assim, às custas da desconsideração daqueles mesmos direitos assegurados na Constituição Federal, que vão desde ao ambiente sadio e à saúde, passando pelos direitos territoriais de povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais, e até mesmo aos direitos que se referem à participação social.

Não podemos esquecer que, somado a alterações normativas que instituem o autolicenciamento, as inúmeras dispensas de licença ambiental e um procedimento ‘célere’, temos uma intensa campanha contra as funções públicas, com o desmantelamento dos órgãos ambientais, o não investimento nas instituições e, ainda, a nomeação de centenas de funcionários que não guardam nenhuma relação com a proteção do meio ambiente.

E isso torna-se ainda mais grave se pensarmos que este debate está sendo colocado no Congresso Nacional, em meio a uma pandemia, com uma votação expressa na Câmara dos Deputados de um texto que não era sequer o que vinha sendo discutido. 

Em nota técnica, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental afirma que “embora com imperfeições, o licenciamento ambiental pode contribuir para a visibilização das desigualdades socioambientais e servir como uma arena pública de debates sobre grandes projetos. Sabemos e denunciamos que os efeitos da degradação ambiental e oacesso à natureza são desiguais. Povos e comunidades historicamentevulneráveis ficarão ainda mais sujeitos a violências e aos efeitosperversos do desenvolvimento brasileiro com o fim do licenciamentoambiental.”. (3) Ou seja, ruim com ele, pior sem ele.

Ou conseguimos construir uma inflexão ao processo do desmonte ou não teremos muitas opções de futuro para serem discutidas. E há luta para isso. Povos indígenas presentes na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a COP26, dizem: “Não há solução para a crise climática sem nós”. Anacleta Pires, liderança quilombola do Maranhão, fala na audiência pública da CIDH: “A coletividade cura”. Que possamos ser capazes de ouvir as vozes que vêm dos territórios.

NOTAS:

(1) A audiência está disponível em https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=9dcRwyyADd8

(2) Trata-se do Projeto de Lei 3.729/2004, aprovado no dia 12 de maio de 2021 na Câmara dos Deputados e que atualmente está sendo no Senado Federal como PL 2.159/2021, sob relatoria da Senadora Kátia Abreu.

(3) A nota técnica está disponível em: https://rbja.org/Cartas-Notas/. Acesso em: 4 nov.2021.

Virgínia Totti Guimarães

Virgínia Totti Guimarães, professora da PUC-Rio, doutora em Direito (pela PUC-Rio), integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Possui pesquisas em Direito Ambiental, especialmente relacionadas à injustiça e racismo ambiental, conflitos ambientais, direitos territoriais, aplicação do Código Florestal.

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