A produção literária de Liliana Heker é capaz de enredar leitores e leitoras de maneira implacável. Eu desafiaria qualquer um que me dissesse que tenha lido um de seus textos sem ficar impactado(a) pela complexidade de sua escrita. Ressalto, em particular, dois de seus romances: Zona de clivagem, publicado pela roça nova, e O fim da história.

Zona de clivagem, publicado originalmente em 1987 e traduzido ao português em 2020, tem como foco o conhecimento, ou melhor, o autoconhecimento de sua personagem central, Irene, uma mulher balzaquiana para aquele contexto. Liliana Heker é muito generosa com leitoras exigentes como eu, que se dá o direito de viver aquela história inventada por uma autora. É bem verdade que já aprendi há muito tempo que “o autor está morto” e que sou eu, a leitora, que dá vida aos romances. Mas se o tal autor não sabe disso, não se faz de morto e impede que a leitora invente aquela história? Ou seja, esse pacto que criamos entre autor e leitor tem que ser de tal maneira dissimulado, a ponto de o autor fingir que escreve uma história, enquanto o leitor finge que a inventa. Sem esse fingimento não há literatura e Liliana Heker sabe disso como ninguém.

Como leitora de Zona clivagem, me vi na pele de Irene, imaginando que outros e outras leitoras possam, ao contrário, ter fugido daquela pele, porque, afinal, sua história é muito dura. Quem se sentiria feliz por permanecer, ao longo de quase trezentas páginas, em constante zona de clivagem? Ninguém quer a instabilidade, ninguém quer a insegurança, a dúvida, a loucura. Todo mundo quer a certeza, a coragem e a resolução do que busca. Mas a vida não é assim, em especial, para mulheres da geração de Heker. Para as que nascemos na metade do século passado, as zonas nunca foram de estabilidade. E a solução sempre foi simples: aceitá-las ou enfrentá-las. Irene, assim como eu, as enfrentamos, mesmo que tenhamos sentido vertigem muitas vezes.

Essa complexidade narrativa se dá a partir de muitos elementos, dentre os quais destaco duas incríveis características da escritora argentina: a meta-produção romanesca e a intertextualidade com outras linguagens estéticas. Estou chamando de meta-produção romanesca a forma de narrar que se faz a partir de duas narrativas que se cruzam intencionalmente: a da narradora onisciente e a da personagem nominada, técnica narrativa utilizada nos dois romances em destaque. Esse artifício narrativo desestabiliza leitores e leitoras, que necessitam buscar segurança em elementos gráficos, como parênteses, itálicos, aspas que o(a)s levem à zona de segurança, permitindo-lhes seguir na invenção da história que se está lendo.

Paralelamente, a intertextualidade com outras linguagens será melhor desfrutada por leitores e leitoras que tenham acesso ao rico mundo da música popular ou clássica, do teatro ou da literatura nacional e internacional. Inventar-se a partir da invenção de Irene muitas vezes só se faz possível através da letra de um tango, da voz de The Platerns, cantando “Only You”, da fala de uma personagem de Shakespeare, das artimanhas de “Polegarzinha”, da poesia de Rubén Dario, da educação sentimental de Flaubert. Às vezes, também, através da Física, esse universo que desconheço, mas que Irene e Liliana conhecem, embora me seja possível inferir, minimamente, que a Física se opõe à Literatura, assim como a Lógica se opõe à Angústia e a Clivagem à Segurança.

Em O fim da história, publicado originalmente em 1996 e ainda não traduzido ao português, o foco se mantém em personagens femininas, embora o contexto seja construído a partir da ditadura militar argentina, ocorrida entre 1976 a 1983. Como já observado anteriormente, a trama se constitui da junção de dois discursos diferentes e apartados, que desestabilizam o(a) leitor(a) em deslizes intencionais. Diana Glass é a protagonista e a autora da meta-produção romanesca, enquanto Leonora é sua companheira desde a Escola Normal e sua personagem fictícia, representando o papel de uma militante de esquerda que, na juventude, sonhou com a revolução como saída para um mundo justo.

Desde os tempos da escola, a capacidade de liderança e de persuasão de Leonora fez com que Diana visse nela o modelo de uma geração que tinha como meta modificar o mundo, embora durante sua prisão, tenha se vendido a um militar em troca da vida de sua filha, colocando em choque duas duras realidades: vender-se ou sobreviver. Para Leonora não foi fácil enxergar aquela realidade, porque, afinal, era míope, como ironicamente anuncia seu sobrenome, Glass, que em inglês significa “óculos”. Aliás, a Irene de Zona de clivagem também sofre de uma insipiente miopia, mas longe de mim imaginar que Liliana Heker estaria representando-se nas duas personagens escritoras de seus dois romances. Afinal, já está mais do que claro que a autora está morta.

O genial recurso da miopia se une a outro eixo fundamental do romance: a preocupação com a exatidão do sentido das palavras, com destaque para “mar”, “madre” e “desaparecido”, vitalmente, relacionadas à história da Argentina daquele momento. Não temo em afirmar que as palavras destacadas pela autora, sem exceção, estão ali com a intenção de resgatar seus sentidos, retirando-lhes a significação autoritária com que aquele sistema político as danificou. De certa forma, Liliana Heker estava valendo-se da ficção para imprimir verdades absolutas.

Enfim, a escrita literária de Lilana Heker é singular. Ler seus romances é tomar contato com questões sociais, culturais, políticas e históricas, problematizadas através de uma literatura inventiva e surpreendente. Como mulher, muito tenho a agradecer-lhe, já que em 1964, ano em que projetou a escrita de O fim da história, eu tinha 16 anos, ela 21 e o Brasil inaugurava um processo de ditadura que afetaria nossos países por muitos anos. Em 1987, ano da publicação do romance, já nos sentíamos maduras para nosso autoconhecimento, assim como entrávamos de sola no Movimento Feminista Latino-americano.

Lumiar, Nova Friburgo, RJ, 07/04/2023

Marcia Paraquett

Marcia Paraquett tem graduação no par português-espanhol (1970), mestrado em Letras (1977) pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo (1997). Foi professora da Universidade Federal Fluminense entre 1977 a 2007, e desde 2009 está na Universidade Federal da Bahia, onde atua no Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura. É autora e organizadora de diversos livros, como Caminhando e contando. Memória da ditadura brasileira (2015) e Interculturalidade e identidade na formação de professores de Espanhol (2018), ambos publicados pela Edufba. É também bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa PROELE: formação de professores e espanhol em contexto latino-americano, inscrito no CNPQ.

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