“Para desenvolver a Inglaterra foi necessário o planeta todo. O que seria necessário para desenvolver a Índia?”
Mahatma  Gandhi

O colonialismo se disfarça com mil roupagens, mas parece que sempre deixa o rabo de fora. A globalização é uma delas, a mais recente e talvez a mais sofisticada. Combinada com as novas tecnologias de controle voluntário de corações e mentes, povoa agora territórios jamais conquistados. Os recônditos das casas, as moléculas de DNA, os sonhos dos desavisados, os vírus das pandemias…

Cada vez mais, talvez agudizada pela pandemia nossa de cada dia, a realidade do projeto colonial, racista, se coloca. Como diz Vandana Shiva, se trata de um projeto que extrai valor dos que produzem vida e cuidado, como camponeses e mulheres, e os faz acreditar que são improdutivos, a não ser que se sujeitem ao mundo do trabalho moderno, que mal traz a subsistência e destrói seus modos de viver.

Esse projeto colonial, tão bem estabelecido, está hoje de tal forma colado a nossa pele que temos enorme dificuldade em imaginar outras formas de viver. No máximo, imaginamos um desenvolvimento menos agressivo, um crescimento menos predatório, remendos em um mundo absurdo, que concentra riquezas e transforma vidas em dispensáveis e substituíveis. A essa imensa dificuldade de conceber outros mundos, Vandana Shiva chamou “monoculturas da mente”. Em um planeta onde, cada vez mais, as monoculturas são a regra, pensar de uma forma única, se tornou também o mais comum. Esse cenário, como vemos hoje, é desastroso em todos os sentidos.

As monoculturas agrícolas destróem os ambientes naturais, causam o desaparecimento de espécies, aceleram as mudanças climáticas, produzem alimentos envenenados, aniquilam a diversidade da natureza e de formas de viver. As monoculturas de animais para consumo incubam doenças, espalham vírus, fungos e bactérias. As monoculturas da mente fazem com que todos queiram as mesmas coisas, que acreditemos que esse é o único mundo possível e que não há janelas para fora dessa forma totalizante de viver.

Nosso imaginário foi colonizado a tal ponto que sequer concebemos outras formas de estar no mundo. As monoculturas conspiram para nos fazer acreditar que se as coisas não forem como são, não sobreviveremos. Querem varrer do mapa a diversidade de possibilidades de produzir. Conspiram também para manter longe dos nossos olhos as formas pelas quais as coisas são feitas. Uma coisa é ver um galpão iluminado por fortes luzes de halogênio, com milhares de galinhas tentando sobreviver em espaços mínimos, apertadas umas contra as outras, sem penas, cheias de feridas e piolhos, pisoteando outras galinhas mortas em decomposição e cacarejando em sofrimento constante. Outra coisa é ir ao supermercado mais próximo e comprar um frango numa bandeja asséptica. Uma coisa é acompanhar crianças em trabalhos extenuantes com jornadas longuíssimas e constantes ameaças de castigos, de quem foi roubada a infância, a esperança e qualquer possibilidade de um futuro com menos sofrimento. Outra coisa é comprar uma deliciosa barra de chocolate na mercearia da esquina. Como é possível dissociar o sofrimento da produção? Fazendo com que todos se concentrem em outra coisa ou os convencendo de que não há alternativas…

Quando Vandana Shiva fala sobre a necessária transformação do conceito de crescimento, ela abre uma janela para fora da nossa forma hegemônica de estar no mundo, e nos permite pensar. Olhar, se tempo tivéssemos, para a vida de muitos dos povos originários, contemplar a natureza e a diversidade de soluções que ela engendra, voltar para dentro de nós, em busca de um âmago ético. Essas são ações que podem ajudar a construir a mudança que precisamos. Mais uma vez, concordo com Vandana, a transformação terá que ser radical, revolucionária, pois se “formos muito vagarosos, a própria destruição será revolucionária”. A mudança revolucionária, nas palavras de Vandana, deve ser dramática, mas também bastante pacífica, sem violência direta contra outros seres humanos.

Apesar de já termos diversos exemplos na história de que muito do que é sólido se desmancha no ar, a capacidade do colonialismo de mudar para continuar como está é evidente. Na América Latina, por exemplo, o colonialismo se transmutou em colonialidade e sobreviveu por meio dos ideais desenvolvimentistas eurocêntricos que povoaram corações e mentes das elites locais. A brecha que a pandemia do coronavírus criou, com a desaceleração do mundo e a certeza – ainda que para muitos, apenas um vislumbre – de que se continuarmos nessa direção e nesse ritmo viveremos em um mundo imprevisível, com surtos de doenças mortais frequentes e eventos climáticos extremos, pode, apesar do momento extraordinário, não ser suficiente gatilho para essa mudança. 

A destruição desse projeto, se possível for, será um longo processo e, talvez, até mesmo as derrotas e as vitórias sejam difíceis de identificar, pois nem sempre é fácil encontrar o tal rabo de fora, entre as roupagens do colonialismo. Enquanto isso, teremos que correr menos, pensar mais e descobrir novas formas de estar no mundo.

Nurit Bensusan

Nurit Bensusan é uma ex-humana. Diante dos descalabros da humanidade, desistiu da nossa espécie, mas não da biologia, nem das questões socioambientais. Assim, divide seu tempo trabalhando com políticas públicas ligadas à conservação e à história das paisagens, tanto naturais quanto culturais, e pesquisando sobre o tema e suas conexões com o conhecimento dos povos indígenas e das comunidades locais.

Entre seus livros estão Conservação da biodiversidade em áreas protegidas (Editora FGV, 2006), Seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade, como, para que e por quê (Peirópolis, 2008) Labirintos: Parques nacionais (Peirópolis, 2012), A diversidade cabe na unidade? Áreas protegidas no Brasil(Milfolhas, 2015) Biodiversidade: tesouro real ou maldição tropical? (Peirópolis, 2018) e Meio Ambiente: e eu com isso? (Peirópolis, 2019).

Além disso, assina o blog Planeta Bárbaro que mistura meio ambiente e ciência, com uma pitada de humor. Seu maior objetivo hoje é ajudar as pessoas a fazerem lé com cré.

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