inverno 2021

Inevitável atmosfera. Táctil como o vento, o ar nos envolve em lufada e brisa, não há saída. Poejo pisado na beira do corgo, faixas compactas de aroma, a flor do guaco que seduz abelhas, a cannabis e seus hipnóticos cristais à flor da pele. Terpenos, petrichor, geosmina e a inefável beleza das moléculas. O meio gasoso é mecânico, é aragem que vibra, soa e ressoa. Estrada de ondas onde frequenta a cambacica, o pixarro, a saracura e a voz da parceira que pede mais uma dose de café. 

Observo. Nos detalhes o olhar se faz e a atenção se concentra em minúsculas letras, teias, formigas. Imagem é foco. O som me divaga. Inverso monge, suspendo a  respiração para melhor ouvir o pega-macaco que assobia nas alturas, meio aéreo. 

Remanso. O silêncio é lago cristalino onde sonoras ondas alcançam a praia e o sabiá pontua a superfície em modulações localizadas. Cantos concêntricos. Primavera não nos deixe. Como um peixe que salta, a choca-da-mata entoa seu choradinho e vocaliza em repetitiva sequência de “cah ahn” ascendente, acelerada, terminando com um profundo “gahan-ahnnn”.  Zoofonia: em alguma azulada  dobra da paisagem, badala ainda o falcão-relógio: Ohn Ohn.

Buzina. O carro curva a estrada, o som propaga montanhas, distorce espaços. O que é distância se tão sinuosas árvores multiplicam os caminhos a seguir? Ruído bom tem hora e lá vai seo Lazinho em seu repetitivo ciclo, a embreagem gasta do antigo fusca saúda o vira-folha, passarinho que na mata seca da beira da estrada revira a serapilheira em busca de besouros e larvas. A vaquinha jersey lança seu mimo, – Bom dia, Mimosa – O barulho do buraco desloca as rodas do trator do haras.  Zumbido de mamangava pendurada na flor de São João.

Roçadeira, martelo, ciclista que berra no fim da subida. A  distante moto-que-serra, o eucalipto que na metrópole vira lenha e pizza e de novo moto. Grilo noturno, cigarra diurna, bacurau no crepúsculo e a varejeira-verde-metálico que frequenta os mesmos ares e paira a pleno sol.  

Eventos. De outros vales, o baixo sintético do funk noturno chega distante, em lufadas. O vento vira e a autobahn transborda inesperada por cima do morro. Quilômetros de distância não são suficientes para evitar o ronco insano dos machos de motos que competem pelo ruído mais grave. Resíduo sonoro, apenas mais uma infecta lata de óleo que flutua em um lago quase cristalino, em uma baía que já foi tranquila. 

O som não respeita fronteiras e assim propaga tanto o bem-te-vi em versão brega-chic, quanto a sirena opressiva da violência de estado que criminaliza a vida para vender vigilância e controle, ou seria o inverso? Legalize! Dilema dos comuns, espaço sonoro é espaço público, de todos e de ninguém. Tecnofonia, tão invisível quanto onipresente. E lá vem a insaciável esteira da pedreira que brita o horizonte e o a jato que passa lá em cima e transforma a floresta em subúrbio, aqui derrama sua turbulência e nos relega viver embaixo da ponte, aérea. 

Só me acalma o papo brando do beija-flor que confabula longas histórias. O mucura, gambá do teto e suas garras que arrastam o forro, ou ainda os ruídos de Barbosa, o quati que escala copas. É agosto, a seca nos espreita e na iminência cinza do fogo que se espalha, adoto a estratégia da paineira que em dúvida de vida, emite flores e sementes ao vento. 

Inevitável vento.

Guto Carvalho

Guto Carvalho é um exurbano e observador de aves. Dedica-se a aglomerar pessoas e a promover a sua relação com a natureza.

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