Remoto mar, o vento frio mareja nas folhas de eucaliptos seculares. No limite norte do vento sul construímos nossa casa cardinal, a varanda pro leste, norte pros quartos e a cozinha de frente pro sul. A frente fria traz o mar de Cananéia e sua umidade alonga-se pelo continente sem barreiras orográficas, até que a Serra do Japi finalmente dá descanso ao vento frio que da Patagonia subiu, trazendo o mar.
Manhã gelada na rampa. Uma casa na montanha é ilusão típica de jovens empresários, esse era eu, mas o passar do tempo ensina que melhor é uma casa no vale, no útero da mãe natureza. Mesmo assim aqui estou, no alto da serra e hoje, no outono do ano e da vida, procuro um nesga de sol pra aquecer a musculatura e aproveitar os pouco dias frios que ainda nos restam.
Céu alto, observar nuvens me ensinou o sentido do tempo e do vento. Cirrus ou talvez stratocumulus, escuto o movimento daquelas nuvens tão imóveis quanto silenciosas. Nem chuvas no horizonte.
Árvore alta, o dossel projeta-se na esfera celeste, o verde viçoso silhueta em contato com o azul. Ali, onde termina a árvore, começa o passarinho. Pelo porte é sanhaço. Uma batida de asa revela o detalhe amarelo, o que define a espécie: sanhaçu-de-encontro-amarelo, bichinho de inverno que por aqui aparece quando a temperatura desce. Assim como ele, o tempo frio traz várias outras espécies ao nosso convívio. Cabecinha-castanha, tesoura-cinzenta, viuvinha, gaturamo-bandeira, beija-flor-fadinha e por aí vai, cada um com seu encanto, colorindo a paisagem sonora.
Um agudo chamado me traz de volta da copa até os galhos da pixirica, ali onde o pula-pula exercita sua onomatopeia cinética em busca de larvas, que coleta embaixo das folhas. Seu canto é notavelmente forte e melodioso, começa com um gorjear apressado, depois passa para uma escala clara, descendente, meio que um assobio. Típico das montanhas florestadas da mata atlântica, o pula-pula-assobiador é, como se diz, a voz da paisagem. Sensível, esse passarinho não gosta de calor e prefere a brenha da floresta de altitude, onde passa o verão. Mas é outono e nessa fresca manhã, ele desce e se aventura ao redor da casa.
A pele da terra é floresta. Encontrar esses passarinhos prova que conseguimos curar o entorno da casa, um alqueire de pasto virou meio mata, meio pomar. Velhas fruteiras contrastam com árvores nativas trazidas pelas aves. Titica de passarinho germinou floresta. Se as aves chegam voando, os macacos voltam pulando, e as lesmas ainda caminham de volta ao ambiente renovado. Cada um no seu tempo.
Mares de nuvens, pontilhado de ilhotas nos topos de morro, o outono era assim. Hoje a brisa do mar é momento raro. Aquecimento local. O que era bruma se espalha em fumaça, a massa de ar quente bloqueia as fracas frentes frias e nos priva do fresco ar polar.
Sem chuva a mata resulta seca, o que antecipa a floração, que dá menos frutos, que dá menos larvas e menos insetos. Tudo está interligado e eu, dileto discípulo do mosteiro das aves, apenas observo o que a montanha ensina.
Dobras da terra, a teia da vida se espalha pela vertente acima e no verão crescente meus amiguinhos de inverno se refugiam nos territórios altos da brisa amena, mas logo o calor sobe mais longe e mais alto que a mais alta montanha. E então para onde ir? Se não há frio para onde fugir? No topo do morro, passarinhos do alto, ilhados, sitiados pelo calor, criticamente ameaçados pelo aquecimento local.
Mudança climática não é mera hipótese, é o acontecimento de pequenos aquecimentos locais. Extinção em massa é a massiva somatória de pequenas extinções. O stress hídrico faz o ipê florir mais cedo, belas imagens podem trazer más notícias. Onde se refugia a poesia se o pôr-de-sol é de um vermelho tão intenso quanto particulado? Aqui no solitário mosteiro morro, escuto apenas a voz da paisagem que repete o mantra. Ah, remoto mar, cada vez mais.
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Guto Carvalho
Guto Carvalho é um exurbano e observador de aves. Dedica-se a aglomerar pessoas e a promover a sua relação com a natureza.