Antes…

Entre as décadas de 60 e 70, aconteceu um movimento literário e editorial que divulgou amplamente na Europa e Estados Unidos obras de autores latino-americanos. Esse movimento de expansão e difusão ficou conhecido como o boom da literatura latino-americana. Autores como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa tiveram obras traduzidas pela editorial Seix Barral – editora de Barcelona, fundada em 1911 e que desde a década de 80 faz parte do Grupo PLANETA. Porém, nem tudo é perfeito. Tal como a Semana de 22 deixou muita gente para trás, assim foi com o boom! Reparem que os nomes que mencionei são todos de homens; escritoras não foram convidadas para entrar nesse “bonde”! Algum tempo depois, assim como na Academia Brasileira de Letras, algumas poucas autoras foram incluídas no movimento.

50 anos depois…

Desde o final da década de 2010 e início de 2020, acompanhamos uma nova onda das edições independentes no Brasil. Edições de livros e revistas com projetos literários muito relevantes e com projeto gráfico de grande expressão estética. Livros lindos, bem acabados e com conteúdos diversos e plurais. Autoras das quais nunca ouvimos falar antes como Sara Gallardo, Ida Vitale, Liliana Heker, Lina Meruane, Guadalupe Nettel, Pola Oloixarac, Cecília Pavón, Alejandra Pizarnik, Giovanna Rivero, Diamela Eltit, Susana Thénon, María Gainza, Regina José Galindo, Camila Sosa Villada, entre outras. Nesse novo boom da literatura latino-americana, mais uma estrela entra no elenco: Mariana Dimópulos – pela primeira vez editada no Brasil, pela Roça Nova, com texto de apresentação assinado pelo Nobel de Literatura J.M. Coetzee.

Mariana Dimópulos nasceu em Buenos Aires em 1973. Estudou literatura na Universidade de Buenos Aires e filosofia na Universidade de Heidelberg. É autora de novelas, romances, contos e obras de não ficção, incluindo um estudo crítico sobre Walter Benjamin. É tradutora de alemão e de inglês para espanhol e leciona na Universidade de Buenos Aires. Em 2018, participou da residência no JM Coetzee Centre, em Adelaide, Austrália, através do projeto Other Worlds: Forms of World Literature, a convite de J. M. Coetzee, Nobel de Literatura.

“É sempre a mesma coisa, sem pudor nem cansaço. Não importa se de manhã ou de noite. Se no inverno ou verão. Se a casa é confortável, se alguém vem me receber. Eu chego, quero ficar, e vou-me embora.”

E assim começa a narrativa de Cada Despedida, que página a página desafia o leitor a entrar na vida vertiginosa da narradora, numa viagem de estranhezas e sem vínculos, onde nada é definitivo, com direito a uma trama policial e suspense. Além disso, há momentos que servem de trampolim para uma reflexão crítica sobre o imigrante na Europa, sobre existir neste mundo neoliberal e a escravidão moderna. Mesmo escrito há dez anos, Cada Despedida é atualíssimo, só faltou uma pandemia – as páginas que descrevem o trabalho na IKEA são cinematográficas com pitadas de crueldade e vingança. Aliás, em alguns momentos há um thriller psicológico, uma tensão entre a narradora e seus interlocutores. E como é isso? Se ainda pensamos numa vida de enredos pré-determinados onde somos conduzidas a um desfecho que siga padrões, que sejam confortáveis e previsíveis, aqui isso não acontece. Menos é mais, com frases curtas e palavras bem escolhidas, a estrutura narrativa é minimalista – os silêncios gritam! As sequências de acontecimentos são fragmentadas, parece não ter sentido para o leitor desavisado, mas em sua costura, a certa altura da novela, puxamos o fio e será erguida uma narrativa bem delineada, uma arquitetura espetacular, formas do tempo tal como uma obra de Calatrava.

A história da arte é uma sucessão de transgressões bem-sucedidas – Susan Sontag

Numa história aparentemente não-linear, a narradora conta o seu cotidiano desde a despedida de Buenos Aires, onde vivia com o pai, um biólogo; ela também bióloga. Uma vida estruturada cheia de regras… da física. Porém, ao chegar  na Europa, continente do velho mundo, continente hostil, a narradora levanta a guarda e prepara os seus jabs, mantendo os demais personagens numa distância segura ao golpe, causando danos e muitas perturbações. A cada cidade, a narradora constrói uma vida diferente, um nome para cada persona, todas em confronto com as diferentes realidades culturais – Alemanha, Espanha, Grécia. Ela nunca segue sendo a mesma, transita pela vida e cidades em constante mutação e adaptação.

Cada Despedida é a segunda novela de MD, lançada no ano de 2010. Essa é a década da Primavera Árabe, é a década das tragédias naturais, a década do início das grandes migrações, crises climáticas, Trump sucede Obama, refugiados, retorno da guerra na Faixa de Gaza, difusão da 4ª Revolução Industrial.

“Eu tivera minha noite de sinceridades – não minta, está na hora de ir embora – e minha visão de futuro – em branco, perfeitamente vazio.”

Após dez anos de peregrinação, interrupção, dispersão e ruptura, a volta da narradora ao Novo Mundo lhe prega uma peça. Eu não vou contar nem dar pistas. Cada vez que leio este livro, quando cruzo a última página, fico sempre pensando nas mulheres nômades que já li: quantas buscas empreenderam, quantos desejos perseguiram, quantos destinos se lhe escaparam. Uma leitura imperdível para estes tempos, com muitas linhas de pensamento possíveis.

Nélida Capela

Nélida Capela é mestra em Teoria Literária na PUC-Rio e atua no mercado editorial e de livrarias. É curadora, com foco em eixos temáticos como Africanidades, Estudos de Gênero e Estudos Indígenas, Mercado Editorial Independente. É  fundadora da NC Curadorias – plataforma independente de curadoria e conteúdo descolonial.

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