Os processos de colonização nas Américas a partir do sequestro de indivíduos de diversas etnias africanas a partir da Costa da Mina (século XVI) para os territórios coloniais, assim como os imperialismos de diversos países europeus em Áfricas, foram de extrema violência e resultaram em projetos coloniais e imperiais da mais perversa sujeição: silenciamentos, escassez, usurpação e apropriação sistemática de culturas e riquezas naturais em larga escala.
A branquidade conseguiu, a partir da “ficção das raças” – que preconizou cientificamente a partir do século XIX a raça branca como superior às demais raças, em particular à raça negra –, colocar em prática tentativas sucessivas de extermínio das populações negras e, não logrando êxito, insistiram com o projeto de extirpação das subjetividades e modos de ser e viver negros, constituindo estados-nações estruturalmente racistas, que se renovam e se sofisticam secularmente.
Porém, negras e negros, em suas constantes e brilhantes estratégias de sobrevivência de seus corpos, vivências e subjetividades, sempre se lançaram no desafio da permanência de suas memórias, legados culturais, legados linguísticos – seja via oralidade ancestro-presentificada, seja via registros da linearidade cartesiana ocidental, àqueles e àquelas que enfrentaram o eurocêntrico e, portanto, hostil ambiente acadêmico –, legados artísticos: intelectualidades, (re)construção e produção de imaginários, tão diversos quanto a enormidade da dispersão africana no mundo, em especial nas Américas.
É possível fazer um mergulho profundo nas travessias do Atlântico Negro a partir das produções literárias de afrodiásporiques/amefricanes do Brasil e de Áfricas, considerando como operador metodológico-teórico a ESCREVIVÊNCIA, conceito de autoria de Conceição Evaristo. Enquanto ferramenta conceitual é um ato de poder. É insubmissão que dimensiona nossas enegrecidas humanidades. Fundamentada no CORPO MULHER NEGRA, não é escrita de si, não é autobiografia ou escrita memorialística: é fundamental e primordialmente a escrita de histórias que arrastam uma coletividade. Um ego que somente pode existir em processo social, coletivo. Sendo assim, escreviver inaugura a possibilidade de deslocamento radical do poder através da vontade de saber, vontade de memória, de arquivo (re)fundante e, como já mencionado e que nunca é demais reiterar: de permanência imanente.
Importantes corpas-multidão no contexto da abolição – mulheres cujas atividades e histórias partiam da possibilidade de libertar quantos fossem possível – foram decisivamente atuantes nesses movimentos abolicionistas e nas lutas emancipatórias de negros no Brasil colonial bem como pós-colonial – tendo em vista que a abolição no Brasil persiste inconclusa; via trânsito nos espaços sociais para o ganho, via suas vivências aquilombadas, via obras abolicionistas – “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, marca esse início de trajetória como sendo o primeiro romance abolicionista em língua portuguesa – mulheres pretas sempre produziram memórias de resistência e fabulações de autoria negra que ficcionaram a liberdade e o devir negros.
Este talvez seja um dos 13 de maio mais amargos do pós-abolição. Sangue de gente preta e pobre rolando em mais uma chacina engendrada pelo Estado. A favela do Jacarezinho somos nós. Permanecemos no lugar de sujeição e violência extremas nesse país. A estrutura racista e suas instituições viabilizam o genocídio negro, sem produzir qualquer crise ética quando do extermínio de corpes pretes. O processo colonial escravocrata, o pacto narcísico da branquidade fóbica, essa brancocracia que sempre prevê proteção entre iguais e nunca se responsabiliza ou se enxerga enquanto racista, fabricando uma realidade de permanente inocência, o biopoder, enfim, contribuem, em larga medida, para que as mortes brutais de pessoas negras, com requintes de crueldade, não gerem crise ética em toda e qualquer instância sócio-política a respeito dos nossos corpos massacrados. A mesma terra “moinho de gente preta”
A literatura, as demais artes negras e tantas outras rotas de fuga produzidas por pessoas negras, portanto, têm sido tão insurgentes, em número e em impacto, quanto nossa crescente incidência política, desde o assassinato brutal de Marielle Franco. No 13 de maio de 1888 se deu uma assinatura tardia e covarde, que reverbera e reproduz o mesmo atraso colonial da elite social, política, intelectual/acadêmica brasileira.
Mais do que nunca: nada a comemorar. Seguimos fazendo do luto, luta. Seguimos caminhando nas trincheiras do fim do mundo.
Maria Amália Cursino
Maria Amália Cursino é comunicóloga, cofundadora e Diretora Executiva e de Conteúdo do Pretaria.Org | Coletivo Pretaria. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Relaçõess Ético-Raciais do CEFET-RJ com projeto de pesquisa em Cinema Negro, dimensionando as cinematografias amefricanas documentais. Editora e colunista do Coletivo Pretaria. Colunista Roça Nova Editora.