Ida Vitale dói. A dor de um retrato antigo onde já não nos reconhecemos. Há que ter coragem para seguir viagem nos territórios de memória que sua poesia acessa, acesa em brasas. Seus poemas tem uma paisagem singular que mistura pássaros, mar, rios, peixes, desertos, mariposas, abelhas. Cabe desfrutá-la sem pressa. Mas nas flores, revelam-se os espinhos. No céu, as sombras e neblinas. Nas palavras, o silêncio das vozes do passado. Sua poesia é cruel como o tempo, que embaraça as histórias e nos desampara. Sem desespero ou desesperança, seu espaço é a solidão e seu tempo é o infinito. Sua poesia é lucidez às cegas.
O título “Não sonhar flores” atribuído à coletânea de poemas de diferentes livros e décadas da produção da uruguaia – entre as mais importantes poetisas da América Latina – antecipa o que seu verso de fato entrega: espinhos que se fincam aos pés do leitor que, uma vez aventurando-se pelos caminhos da sua poesia, não é mais capaz de voltar atrás e segue o encantamento e também o incômodo.
Não é simples deixar de sonhar flores. Fomos treinados para desejá-las. Aprendemos suas cores. Acreditamos nas lendas de jardins suspensos. Omitiram das histórias os espinhos e o sangue que eles arrancam daqueles que ousam tocá-las. O poeta é esse que sangra quando alcança a intimidade das palavras. Ida dói, porque é imensa. Porque alcança as flores mais raras e também a compreensão de que desejá-las foi um erro.
Ida diz: “partir de forma lenta/permite que te abrigues,/na recapitulação da alegria,/do medo não pensado,/ ambos em conciliação ritual./Ama por osmose,/quietíssima”. É assim, quietíssima que Ida surge com seus versos de silêncios profundos e de um amor prescindível.
Já a obra de Ida Vitale é imprescindível para reconhecer o brilho da literatura latino americana contemporânea. Essa primeira edição da autora em português – na sensível tradução de Heloisa Jahn – é um presente generoso da editora Roça Nova para aqueles que somam ao interesse pela produção literária do continente também o prazer da poesia. Com certeza, uma surpreendente descoberta que permanecerá latejando no corpo dos leitores como um espinho na carne dos sonhos.
Karla Mourão
Karla Mourão é jornalista, trabalhou no mercado publicitário nas áreas de Planejamento, Consumer Insights e Novos Negócios. Há 21 anos, abriu sua própria empresa de Comunicação Corporativa, Scriptorio, hoje Escritório 21. Na agência, é CEO e responde pela Direção de Criação e pelo Planejamento Estratégico. Karla é também poeta, escritora e colagista.